(desculpem de antemão meu holando-português…)
Como menino, nos primeiros anos da escola primária, senti a vocação do ministério. De frente à porta da nossa casa, juntei as crianças da nossa rua para brincar ‘culto’. Claro que o papel de pastor era reservado para mim. Principiando na arte da leitura, tinha trazido todo livro de igreja que pude encontrar na nossa casa. Era um culto ecumênico, com participantes de várias igrejas. Tinha até caráter evangelizador. Este culto infantil não era demorado. Depois de dez minutos, parecia mais atraente de ir jogar futebol.
Brincar ‘culto’ era a minha primeira experiência consciente com o fenômeno de ‘poder’. Defino ‘poder’ como ‘a capacidade de influenciar o comportamento de outras pessoas, mesmo contra a sua vontade’. Fui eu quem determinou o comportamento das outras crianças. Neste caso aceitaram o meu poder por vontade própria – quer dizer, apenas durante dez minutos.
Poder não é necessariamente algo negativo, apesar de às vezes negar a vontade das pessoas. Em geral poder é inevitável e faz parte de qualquer relação entre pessoas. Tudo depende de como o poder é usado: como meio ou como finalidade em si. E depende do caráter desta finalidade.
Me lembrando desse jogo na infância, me dou conta de que já muito cedo na vida as oportunidades de exercer o poder abundam. Faz parte da educação. Crianças devem aprender como lidar com esta capacidade. Assim os meus pais procuraram influenciar o meu comportamento, pensando no meu futuro comportamento na sociedade. Usaram o seu poder para ensinar o uso responsável do poder.
Mais tarde, atuando como professor, exerci poder sobre os meus alunos, dentro da definição dada. Na prática, porém, o meu alvo didático tem sido de estimular seu comportamento independente e autônomo. É o clima da academia. Procurei cativar para poder libertar. Ensinei para desaprender. Da minha maneira tentei usar o meu poder de modo responsável. Parece contradição, pois o poder reduz a liberdade. Que dilema delicado!
Tem muitas oportunidades nas quais surge a pergunta da melhor atitude acerca do uso do poder. Na prática quotidiana, porém, nós dificilmente estamos conscientes da multidão de manifestações que procuram nos influenciar. Agências de publicidade se comportam como sedutoras atraentes e naturais, camuflando o seu poder sobre nós. Apesar do dito brasileiro: ‘Aos amigos tudo, aos inimigos a lei’, o legislador define as regras quase óbvias do nosso comportamento quotidiano. Assim a sinaleira rege o trânsito, mesmo se o vermelho pode significar ‘buzinar e seguir’, como aprendi em Curitiba durante os nossos primeiros meses na Pátriamada. A nossa vida conhece muitas sinaleiras.
Na religião também o aspecto do poder se faz sentir. Idealmente, os fiéis seguem as convicções e a moralidade da sua religião. Na organização da religião, o poder de certas pessoas inevitavelmente se faz sentir. Cada igreja tem a sua estrutura própria, uma mais horizontal, outra mais hierárquica. A liderança exerce poder sobre os fiéis. Pregadores praticam a educação permanente, procurando influenciar a maneira de viver e pensar dos ouvintes.
O poder de uma religião não se limite aos seus fiéis. Ela pode propagar uma certa visão exclusiva da vida e da ética ideal, assim como uma visão da sociedade perfeita. Por isso muitas religiões procuram recrutar adeptos novos. É a sua maneira de ganhar influência na sociedade. Pentecostais, Evangelicais e Testemunhos de Jeová são assertivos na sua maneira de evangelizar. Recentemente as igrejas Pentecostais brasileiras conseguiram uma expansão inédita, dentro e fora do país. A IURD apresenta o exemplo mais claro. Por algum tempo, a bancada evangélica teve influência em Brasília. As teologias de libertação procuram mudar a sociedade. Do seu modo, Salafistas muçulmanos investem na expansão da sua versão do Islã.
Com exceção de uma ortodoxia autárquica, como a dos judeus ultra-ortodoxos, uma convicção forte parece implicar uma expansão explícita. Não precisa surpreender, pois o assunto predileto de pessoas convictas é a sua visão entusiasta. No Brasil, precisa de apenas uma viagem de ônibus para encontrar a prova disso.
A ênfase na expansão religiosa demanda uma organização bastante hierárquica do poder. Este tipo de organizar-se deve facilitar o crescimento. Ao mesmo tempo a expansão pode aumentar o impacto da liderança sobre os seguidores. Uma cúpula forte se baseia em opiniões claras e exclusivas. O seu poder na sociedade depende do número de seguidores. Assim se forma e exerce-se o poder religioso, quase de maneira óbvia. Mas é só um pólo do espectro.
Ao outro extremo do dilema se encontra uma postura liberal. Embora minoritária, esta alternativa ocorre em várias religiões. Mesmo ficando dentro dos parâmetros da própria religião, prega a liberdade de escolher a sua própria convicção. Cativa também para libertar. A reflexão libre caracteriza esta fé. Embora na prática este ideal não foi sempre respeitado, a Reforma estimulou esta atitude. A verdade não tem proprietário exclusivo. Estimulou cismas dentro da Reforma. Multiplicou o número de igrejas protestantes.
Me lembro do que Mário Quintana disse acerca da fé: ‘Uma das coisas que não consigo absolutamente compreender são os que se convertem a outras religiões. Para que mudar de dúvidas?’. É paradoxal como uma atitude mais liberal tem dificuldade de recrutar adeptos. Enquanto o exclusivismo expande com facilidade, o inclusivismo falha neste respeito.
Os pais que adotam uma postura mais inclusiva e aberta da fé, facilitam para os seus filhos a escolha libre. Agindo assim, não contribuem necessariamente à continuidade da sua religião. Mas optam por esta postura, pois querem respeitar o que consideram a essência da sua fé. Diferem assim da ortodoxia, que também diz defender uma essência.
Eis a lição dos meus primeiros passos na vocação, de frente da nossa casa. Entre poder absoluto e liberdade total, procuro descobrir uma síntese. Na minha maneira de estudar a religião e as religiões, aprendi a desconfiar o efeito da prática do poder. O poder do professor já era desafio suficiente… Por outro lado, vejo que alguma forma de poder é necessária para ao menos poder manter o ideal da liberdade. É a minha santa convicção, consciente dos extremos, apreciando o valor de ambos os pólos.
Aliás, me pergunto como surgiu o conceito de Deus todo poderoso… Ou de Deus libertador…
B04-091213
Reações são bemvindas. Inicialmente são lidas exclusivamente por André Droogers.